Brasília/Brasil – Projeto “Língua Mãe”

In Costa, João (2010). Jornal dos Carvalhos. Escola de Música de Perosinho na comemoração dos 50 anos de Brasília.

“Três continentes, três países, três coros, uma só língua!”. Foi assim apresentada a proposta para a participação no projecto “Língua Mãe”. Fomos desafiados a encontrar cerca de sessenta crianças entre os sete e os dez anos de idade para a realização de um workshop musical, após o qual, apenas trinta dessas crianças seriam seleccionadas para se juntar a mais trinta angolanas e sessenta brasileiras para a criação de um grupo de cento e vinte vozes. Um projecto com o propósito de juntar estas crianças já seria extremamente motivador mas, juntando a este aspecto o facto de o projecto contemplar a participação num concerto com orquestra sinfónica, uma interacção muito significativa e próxima com Naná Vasconcelos, numa das salas de espectáculo mais importantes do Brasil (Sala Villa-Lobos do Teatro Nacional de Brasília) e, ainda por cima, num evento de grande importância em termos internacionais (a comemoração dos 50 anos da cidade de Brasília), implicando a viagem e a permanência em Brasília durante dez dias, então podemos afirmar que este projecto “só acontece uma vez na vida de uma criança e de uma escola”.

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Projecto “Língua Mãe”
A ideia do “Língua Mãe” foi do percussionista Naná Vasconcelos, considerado por várias vezes, o melhor percussionista mundial. Naná tem feito trabalho musical muito diverso, colaborando com alguns dos melhores músicos mundiais; um dos seus trabalhos mais significativos foi o projecto “ABC Musical”, no qual ele reuniu crianças de vários locais do Brasil, com quem trabalhou músicas do repertório popular brasileiro. O culminar do projecto foi a apresentação em concerto com Orquestra liderada pelo Maestro Gil Jardim. Foi notório o entusiasmo das crianças e a enorme emoção causada a todas as pessoas que assistiram aos concertos. O projecto “Língua Mãe”, apesar de ter os mesmos objectivos artísticos do “ABC Musical”, pretendia ir mais além e incluir uma dimensão mundial: reunir crianças dos três continentes que fazem a matriz cultural do Brasil (Europa, África e América do Sul), numa celebração da língua portuguesa. Para além do concerto como produto final do projecto, existia também a intenção de realizar um documentário (da responsabilidade de Léo Falcão e Fernando Weller) que abordasse as diferentes formas de viver a infância nos três países: a forma como vivem com as suas famílias, como estudam, como brincam, etc. Um outro objectivo seria do documentário seria o relato do relacionamento entre as crianças durante o tempo que permanecessem em Brasília. Resumindo: o projecto “Língua Mãe” contemplava vários objectivos:
1. Celebrar os 50 anos de Brasília e a influência das culturas europeia e africana na construção do Brasil;
2. Documentar as diferenças e semelhanças na forma de ser criança nos vários países;
3. Proporcionar um espaço de relação entre as crianças e a sua participação num projecto artístico de grande interesse musical e cultural.
4. Divulgar junto das escolas públicas brasileiras, através da distribuição do Documentário e do DVD do Concerto, os méritos de um projecto de intervenção na área da diversidade e cidadania através da música.

A avaliação do projecto
Um projecto desta envergadura terá de ser analisado de uma forma muito profunda, de acordo com todas as suas dimensões:
Na primeira fase do projecto, Naná Vasconcelos deslocou-se à Escola de Música de Perosinho (EMP) para a realização de três dias de workshops. Para além de divulgar o seu instrumento predilecto, o berimbau, presenteando as crianças por diversas vezes com “concertos privados”, ensinou histórias e canções de vários locais do Brasil; muitas dessas canções relatam personagens e acontecimentos que têm origem em lendas portuguesas (por exemplo, a referência à “Nau Catarineta” a aos marinheiros que vieram d’além mar). As crianças estiveram sempre extremamente curiosas e interessados, passando a cantar constantemente as canções aprendidas, sem nunca descurar o sotaque brasileiro. Depois, deu-se uma longa espera de mais de um mês. Neste período realizaram-se alguns ensaios para relembrar o que se tinha aprendido. No dia 11 de Abril partimos. Na EMP reuniram-se as crianças e os seus familiares e, apesar da emoção, a partida deu-se sem grandes “dramas” (pelo menos por parte das crianças). Fez-se a viagem de autocarro até ao aeroporto de Lisboa onde nos encontramos com as crianças angolanas: quando os portugueses ouviram os angolanos a cantar, começaram também e o encontro deu-se a cantar uma das peças ensaiadas pelo Naná – foi a primeira “ponte” construída entre estas crianças que não se conheciam. A viagem de avião, apesar da excitação de alguns, correu muito bem e, quando chegamos a Brasília, durante a espera pelas malas, todas as crianças portuguesas e angolanas se misturaram e começaram a brincar juntas, ensinando umas às outras as suas brincadeiras. Logo a partir deste momento, qualquer diferença que poderia existir na cabeça de qualquer um se esfumou, existindo uma procura constante de ambos os lados para brincadeiras comuns. Durante os dias seguintes sucederam-se os ensaios com o Naná, com o Maestro e com os percussionistas convidados. Tivemos também vários momentos de interacção com as crianças brasileiras, nomeadamente no dia em que visitamos a sua escola, na cidade periférica de Ceilândia; aí fomos muito bem recebidos e as crianças puderam brincar mais à vontade, sem o controlo tão cerrado dos adultos. Dessa visita podemos salientar o torneio de futebol entre os três países onde, para além de termos ganho o torneio, contribuímos um pouco para a igualdade de género: os rapazes brasileiros impediram que as meninas jogassem porque, segundo eles, “as meninas não sabem jogar à bola”… Após algumas negociações, conseguimos que entrasse uma menina em cada equipa e, para surpresa dos rapazes, acabou por ser uma menina a melhor marcadora e a melhor jogadora do torneio. Uma outra actividade foi a visita a um museu de uma outra cidade periférica chamada Planaltina. Aí ficamos a saber que os responsáveis pelo desenvolvimento do planalto central brasileiro foram portugueses da cidade de Guimarães com os apelidos de Monteiro e Guimarães. O contacto entre as crianças e os seus pais era feito de uma forma quase diária através do skype (vídeo conferência) e também pelos filmes que iam sendo colocados no youtube na página do facebook da EMP. Esses filmes iam relatando todas as actividades diárias das crianças, para além de outras curiosidades que iam acontecendo. Foi uma forma muito interessante de os pais participarem activamente no projecto, apoiando constantemente todos os participantes através das suas mensagens de incentivo. O projecto culminou com o concerto, realizado no dia 20 de Abril. As crianças brasileiras estavam de azul, as portuguesas de vermelho e as angolanas de amarelo. Começou primeiro a orquestra, à qual se juntou o Naná. Depois, as crianças brasileiras entraram a cantar uma peça infantil chamada “Na corda da viola”, seguindo-se as portuguesas ao som do “Milho Verde” (contribuição de Portugal para este “caldo de culturas” – um enorme sucesso!!!); por fim, o grupo angolano entrou a dançar. O concerto continuou com as músicas ensaiadas pelo Naná e, para além da beleza das canções e dos arranjos orquestrais, foi extremamente emocionante a absorção de tantas outras mensagens implícitas e explícitas, também reforçadas por imagens do documentário. Terminou o concerto com uma mistura de todas as crianças, num acto simbólico de união e diversidade.

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João Costa
Director Artístico da Escola de Música de Perosinho